segunda-feira, 12 de outubro de 2009


Nossa Vida, Nossa Liturgia


Responda rápido: Jesus ensinou a fazer liturgia ou a viver para Deus? Creio que a própria pergunta já sugere a resposta.

Podemos iniciar nossa reflexão pensando na oração: na falta de qualquer ensinamento imediato e sistemático por parte de Jesus, os discípulos tiveram de solicitar-lhe que os ensinasse a orar. Com certeza, o desejo de aprender a orar foi despertado neles por verem Jesus orando, tanto em público como em particular. Jesus também fez referências à necessidade de se conhecer a Bíblia, servindo ele mesmo de exemplo quando demonstrou familiaridade com as Escrituras (até com 12 anos de idade) e com sua leitura em público. Entretanto, não há como não reconhecer que foi muito mais enfático ao falar sobre a necessidade do conhecimento da própria pessoa dele. Quanto ao louvor musical, não encontramos nenhuma referência, exceto após a última ceia.

Vemos que Jesus exercia seu ministério sem separar um tempo ou local à atividade sagrada. Fez milagres em todos os lugares: na praia, dentro do mar, no campo, na rua, em casa ou na sinagoga, no meio da multidão ou em companhia de poucos. Ele não se preparava para uma ministração, pois a sua vida toda exalava ministração ininterrupta e, portanto, tudo o que fazia era sagrado.

Ele encontrava pessoas e travava relacionamentos com elas, confrontando sua realidade no cotidiano: na praia, no trabalho de consertar redes, na coletoria de impostos, sentados embaixo de árvores ou no alto delas, à beira de um poço d’água, durante uma festa ou um velório, à noite ou durante o dia, no jantar ou no almoço e, até mesmo, numa sinagoga. Não importava se se tratasse de um mendigo ou um nobre, uma criança ou um ancião, um erudito ou um analfabeto, um homem honrado ou uma notória pecadora.

Os discípulos procediam de forma semelhante, apresentando Jesus às pessoas em praça pública, em casas, à porta do templo, durante uma viagem ou mesmo numa sinagoga, entre pessoas simples ou governantes, a multidões ou indivíduos. Onde quer que estivessem, sabiam que Jesus estava ao seu lado e isso era suficiente para que o apresentassem aos outros, como podemos conferir no livro dos Atos dos Apóstolos.

Podemos imaginar como seria estranho se Jesus procedesse como nós para fazer discípulos, propondo que antes de cada intervenção se criasse um ambiente propício à aceitação do apelo pós-pregação ou que houvesse ruidosas declarações de fé antecedendo a operação de cura ou outra maravilha. Tudo isso evidentemente precedido por uma grande e maciça campanha de divulgação e marketing, que anunciaria o nome do servo de Deus, dia, local e hora em que as pessoas deveriam comparecer para presenciar o espetáculo, tendo obrigatoriamente de passar pelas bancas sutilmente montadas para comercializar os produtos que ajudariam a custear as despesas do evento.

Devemos reconhecer que somos muito tardios em compreender e praticar aquilo que Jesus nos ensinou. Nossa evangelização consiste muito mais em ensinar as pessoas a ler a Bíblia regularmente, fazer orações e cantar as músicas gospel da parada de sucessos. Adquirimos o hábito de encontrar Deus e apresentá-lo às pessoas, não sem conduzi-las a um templo. Ainda que tenhamos falado de Jesus antecipadamente, isso parece ter sido apenas uma apresentação informal que precisa ser ratificada por meio de uma audiência oficial com ele, num determinado lugar, numa determinada hora, com determinada cerimônia – ou seja, num templo e com uma liturgia de culto. Somente à medida que o evangelizando consegue interagir com esses elementos é que se mensura a sua atitude de convertido. Os mesmos parâmetros valem para a aprovação de um obreiro. Ou seja, ele precisa orar bem em público, cantar ou tocar bem um instrumento (se for candidato à equipe de louvor), ou fazer bons discursos baseados na Bíblia (se quiser ser um pregador), a ponto de ser um exemplo que conduza os outros a fazerem o mesmo.

A maneira como Jesus se introduzia no dia-a-dia das pessoas mudava a atitude delas no cotidiano. Atualmente, evangelizar traduz-se como uma tentativa de implantar o cristianismo na vida religiosa das pessoas, e é exatamente isso o que acontece: elas mudam apenas no aspecto cultural. Como só esperávamos isso, ficamos contentes e ainda o chamamos de conversão. No entanto, nossa excessiva preocupação em ensinar a liturgia resulta na formação de pessoas bem treinadas liturgicamente, porém nem tanto no que diz respeito à transformação de sua vida pessoal e social. É comum ver pessoas que se denominam cristãs não se importarem com pequenos delitos no trânsito, emitirem cheques sem fundos, não honrarem dívidas, sonegarem impostos, omitirem direitos trabalhistas, faltarem com a verdade em muitas ocasiões, mentirem ou desobedecerem aos pais, trapacearem em provas escolares, evitarem os necessitados ou agirem sempre em legítima e própria defesa, entre outras coisas. Ao mesmo tempo em que fazem essas coisas com natural negligência, sem se importarem com as conseqüências, esmeram-se em cumprir o ritual litúrgico da igreja, demonstrando nitidamente a dicotomia que separa o sagrado e o secular na vida pessoal.

Para resolver essa questão, precisamos agir cada vez mais como Jesus agiu, fazendo com que nossa vida seja naturalmente espiritual, sacralizando, ou santificando, todas as áreas de nossa vida. Dessa mesma forma, todo o dinheiro que recebemos é consagrado a Deus, sendo que os 90% são mais significativos no que diz respeito à qualidade de nosso relacionamento com o Senhor do que a décima parte que entregamos a título de dízimo, uma vez que temos uma liberdade maior para tomar decisões sobre a sua destinação. Em outras palavras, o dízimo diz respeito à nossa relação de compromisso com a igreja e com a lei, enquanto que os outros 90% refletem diretamente o relacionamento pessoal com Deus à medida que permitem estabelecer prioridades, com base na compreensão da graça. O princípio aqui envolvido permite-nos não reduzir a devoção às orações antes das refeições, ao dormir ou ao levantar, uma vez que toda a vida será de oração. Também saberemos reconhecer Jesus não somente através das páginas da Bíblia, mas por meio do relacionamento com ele, de tal forma que o dia-a-dia seja completamente impregnado da sua presença. Assim, o exercício da profissão, rotulado de secular, será tão sagrado que também poderá ser chamado de ministério. O mesmo poderá ser dito das demais relações familiares e sociais.

Mudando assim o foco da nossa vida e a ênfase da nossa evangelização e discipulado, podemos ser libertos de formas exteriores e da dicotomia (separação de sagrado e secular) tão perniciosa à genuína espiritualidade, gerando assim resultados radicalmente diferentes em nós mesmos e nas pessoas que nos ouvirem.

Pedro Arruda (Revista Impacto)

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